Imagine receber um vídeo nas redes sociais em que dois políticos, conhecidos adversários, aparecem celebrando juntos. O cenário é inverossímil: Um deles segura taças de champanhe, reforçando a ideia de extravagância; o outro veste uma farda militar, evocando estereótipos autoritários. Você rapidamente percebe que se trata de um vídeo falso, uma deepfake. Contudo, o impacto psicológico e social desse conteúdo permanece – mesmo com a consciência de que é manipulado.
A influência invisível das deepfakes
Como já dizia o ditado, “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Elliot Aronson, em O Animal Social, explica que, independentemente da veracidade de uma imagem, ela exerce influência sobre nossas percepções e reforça vieses inconscientes. Assim, mesmo que você saiba que o vídeo é falso, ele ainda pode consolidar estereótipos preexistentes.
No exemplo citado, quem já associa um dos políticos ao álcool enxergará as taças de champanhe como uma “prova” simbólica de um comportamento esperado. Já a farda militar reforçará o viés de quem enxerga no outro político traços de autoritarismo. Essa sutileza transforma as deepfakes em ferramentas poderosas de manipulação, especialmente em contextos políticos e eleitorais, onde opiniões podem ser moldadas de forma quase imperceptível.
Deepfakes e a proteção jurídica
Do ponto de vista jurídico, a questão central das deepfakes não é apenas a falsidade, mas o impacto que elas geram, mesmo quando identificadas como conteúdo manipulado. No Brasil, a CF/88 e o Código Civil protegem direitos fundamentais, como a honra, a imagem e a privacidade. No entanto, a legislação atual não aborda explicitamente os danos causados por manipulações digitais que operam de maneira tão sutil.
Adicionalmente, a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados estabelece diretrizes para o uso ético de dados pessoais, mas não cobre plenamente as situações em que imagens ou vozes de indivíduos são transformadas para fins de manipulação ou desinformação. A ausência de normas específicas para deepfakes cria um vácuo legal, dificultando a responsabilização tanto de quem produz quanto de quem dissemina esses conteúdos.
A persistência do impacto e os desafios jurídicos
O grande dilema das deepfakes é que sua influência não depende da credibilidade. Mesmo que o receptor saiba que o vídeo é falso, ele pode internalizar a mensagem implícita – um fenômeno que especialistas em comunicação digital chamam de “permanência do impacto”. Essa característica única desafia o Direito, pois não se trata apenas de evitar a disseminação de conteúdos falsos, mas também de lidar com os danos psicológicos e sociais que eles provocam.
Além disso, o uso de deepfakes pode configurar crimes de difamação e injúria, especialmente em casos envolvendo figuras públicas. Em períodos eleitorais, manipulações desse tipo podem ser enquadradas como propaganda irregular ou mesmo abuso de poder, conforme previsto no Código Eleitoral.
Regulamentação e responsabilidade
Embora existam iniciativas legislativas em andamento para regulamentar o uso da Inteligência Artificial no Brasil, a criação e disseminação de deepfakes ainda carecem de uma abordagem mais detalhada. Juristas defendem que a responsabilidade por esses conteúdos deve ser ampliada para incluir as plataformas digitais, que lucram com a viralização de vídeos manipulados, mesmo quando identificados como falsos.
Adicionalmente, tecnologias de autenticação, como blockchain, e ferramentas avançadas de detecção de deepfakes precisam ser integradas ao sistema jurídico para oferecer maior segurança probatória. Essas soluções poderiam ajudar a evitar que vídeos manipulados sejam usados como evidências falsas em processos judiciais ou para manipular a opinião pública.
Reflexões para o Direito e a sociedade
As deepfakes representam um desafio inédito para o ordenamento jurídico, pois suas consequências vão além do que é visível. O impacto psicológico e social permanece mesmo quando há plena consciência da manipulação. Nesse contexto, o Direito precisa avançar para proteger não apenas os indivíduos diretamente afetados, mas também a própria integridade das instituições democráticas.
A regulação das deepfakes deve ser tratada como prioridade, incluindo a criação de mecanismos claros de responsabilização e estratégias para educar a sociedade sobre os riscos da desinformação. Afinal, no mundo jurídico, onde provas e narrativas são cruciais, distinguir o real do manipulado nunca foi tão urgente.