Departamentos de polícia em regiões próximas à fronteira entre os Estados Unidos e o México estão utilizando uma tecnologia controversa desenvolvida pela empresa nova-iorquina Massive Blue. O sistema, chamado Overwatch, cria personas virtuais geradas por inteligência artificial que simulam identidades reais nas redes sociais para interagir com suspeitos de crimes — incluindo traficantes de drogas e pessoas, e até “manifestantes universitários” e ativistas políticos. A revelação foi feita pelo portal 404 Media, que obteve contratos e documentos internos por meio de pedidos de registros públicos.
De acordo com as investigações, a Massive Blue comercializa o Overwatch como um “multiplicador de força alimentado por IA”, capaz de infiltrar-se em redes criminosas por meio de conversas em plataformas como Telegram, Signal, Discord e SMS. Os perfis criados pela empresa são detalhadamente elaborados, com histórias pessoais e características psicológicas que os tornam críveis. Entre os exemplos apresentados estão uma “manifestante universitária” de 36 anos, uma “recrutadora de protestos”, um “garoto de 14 anos” e até uma “persona cafetão”.
Apesar da sofisticação da proposta, nenhuma prisão foi registrada até o momento em decorrência do uso da tecnologia. O Condado de Pinal, no Arizona, firmou um contrato de 360 mil dólares com a empresa, financiado com recursos federais destinados ao combate ao tráfico de pessoas. Já o Condado de Yuma testou o sistema por 10 mil dólares, mas não renovou o contrato, alegando que o produto “não atendeu às necessidades” locais. Mesmo assim, a Massive Blue continua oferecendo seus serviços a outros condados e departamentos de segurança pública.
Críticos apontam que o uso dessas personas de IA levanta sérias questões éticas e constitucionais, especialmente por poder violar direitos da Primeira Emenda, que protege a liberdade de expressão e de associação. Dave Maass, da Electronic Frontier Foundation, afirmou que o projeto parece ter um escopo mal definido e pode estar “criminalizando o ativismo e a dissidência política sob o disfarce de segurança pública”.
Os documentos mostram ainda que o Overwatch se baseia não apenas em interações online, mas também em análise de dados de telecomunicações e blockchain, rastreando transações de criptomoedas e geolocalização. A tecnologia seria capaz, inclusive, de gerar “provas de vida” falsas — imagens fabricadas por IA de pessoas segurando placas com datas e nomes escritos à mão, o que aumenta as preocupações sobre possíveis abusos e falsificação de evidências digitais.
Representantes da Massive Blue defendem que o objetivo da ferramenta é ajudar na luta contra o tráfico humano e a exploração infantil, negando qualquer uso indevido. No entanto, as autoridades locais têm mantido segredo sobre o funcionamento do sistema. Durante audiências públicas no Arizona, policiais se recusaram a explicar o software, alegando “segredos comerciais” e a necessidade de não “alertar os bandidos”.
Apesar das dúvidas, em junho e julho de 2024, o Conselho de Supervisores do Condado de Pinal voltou a discutir novos contratos com a empresa, desta vez no valor de 500 mil dólares. Alguns conselheiros questionaram a eficácia e a transparência do projeto, enquanto outros defenderam a continuidade sob o argumento de que “qualquer ferramenta que possa ajudar a combater o tráfico de pessoas merece ser testada”.
O caso da Massive Blue ilustra o avanço silencioso de tecnologias de vigilância automatizada no aparato policial norte-americano. Ao misturar inteligência artificial generativa com práticas de infiltração digital, o Overwatch inaugura um novo e preocupante capítulo na relação entre segurança pública e privacidade — um território onde as fronteiras entre investigação legítima e espionagem de cidadãos se tornam cada vez mais tênues.