Os debates em torno da proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital vêm ganhando tração em todo o mundo nos últimos anos, com diversas jurisdições adotando leis e regulamentos específicos sobre o tema. No Brasil – país onde a internet é utilizada por 95% das pessoas com idade entre 9 e 17 anos, segundo a pesquisa TIC Kids Online 2023 –, as preocupações relativas ao resguardo dos mais vulneráveis em sua interação com as tecnologias digitais aumentam à medida que novos casos de exploração comercial dessa camada da população ganham o conhecimento público.
O caso mais recente é o da denúncia contra o Instagram, da empresa Meta, realizada pelo Instituto Alana ao Ministério Público de São Paulo, em junho deste ano, por permitir que influenciadores digitais mirins façam publicidade de casas de apostas.
O Alana identificou cerca de 50 stories, em perfis de crianças e adolescentes que produzem conteúdos para as redes sociais, divulgando cassinos online, como o famoso “Fortune Tiger”, aos seus pares no Instagram. A organização reportou os conteúdos para a Meta, sem sucesso. Isso porque o aplicativo não tem um mecanismo adequado para receber denúncias de conteúdos ilícitos dessa natureza.
Esses casos foram encaminhados por vias alternativas (por exemplo, como conteúdos que constituíam “Golpe ou Fraude”). Os vídeos não foram retirados do ar pelo Instagram e a plataforma chegou a enviar mensagens afirmando que a publicidade denunciada não violava os seus termos de serviço.
Em suas “Diretrizes de Comunidade”, a rede social alerta seus usuários a “sempre cumprir a lei ao oferecer a venda ou a compra de outros produtos regulamentados”. Outros casos, como “apostas online, jogos online de habilidade valendo dinheiro real ou loterias online” devem obter, primeiramente, a permissão “por escrito” da big tech antes de serem ofertadas.
Ou seja, se a publicidade de cassinos online deve ser precedida de uma autorização do Instagram, dois cenários são possíveis: a Meta não respeita suas próprias diretrizes ou aprovou que os influenciadores digitais mirins divulgassem os jogos de azar para seus seguidores, negligenciando o que determina a legislação brasileira.
Esse tipo de publicidade digital abusiva feita pelas casas de apostas é só a ponta do iceberg da crise envolvendo as infâncias e o ambiente digital. Outras crises como excesso de tempo de navegação, hiperexposição nas redes sociais e substituição de experiências ao ar livre por atividades em frente às telas também vêm se tornando objetos de estudo dos mais diversos campos de pesquisa – da psicologia à economia, do direito à neurociência –, em todo o mundo.
É neste contexto que foi aprovada, em maio deste ano, a Resolução 245 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que, de maneira inédita no Brasil, dispõe amplamente sobre os direitos de crianças e adolescentes na internet.
Aplicando leis já vigentes no ordenamento jurídico brasileiro, a Resolução estabelece princípios básicos para a proteção dessa faixa etária no ambiente digital (Capítulo I). Ela define especificamente os direitos de liberdade de expressão e privacidade na internet (Capítulos III e IV), prevê a criação de uma política nacional de proteção dos direitos da criança e do adolescente no ambiente digital (Capítulo II), inclui ações de conscientização e mobilização (Capítulo VI) e esclarece as medidas que o setor empresarial deve adotar para garantir os direitos desse camada vulnerável da população (Capítulo V).
A responsabilidade das empresas é particularmente relevante na medida em que boa parte dos riscos aos direitos dos mais novos oferecidos pelo ambiente digital decorre da negligência com a legislação vigente e de suas próprias práticas comerciais, como pudemos ver no exemplo acima.
Em alguns casos, essas violações se sobrepõem e resultam em um ambiente hostil para as crianças e adolescentes que navegam na internet, com marcas valendo-se das falhas de segurança de grandes plataformas digitais para realizar práticas ilícitas, que dificilmente seriam imagináveis em um contexto anterior à difusão das tecnologias digitais.
É justamente por isso que as disposições da Resolução 245 do Conanda relativas às obrigações do setor empresarial são cruciais para garantir a proteção dos mais vulneráveis na internet.
Ao reforçar que as big techs mitiguem, coíbam e adotem medidas de responsabilização diante de qualquer abuso ou violação dos direitos dos mais novos (art. 18), o texto, alinhado com as disposições do Código de Defesa do Consumidor, o princípio da boa-fé objetiva e, sobretudo, o art. 227 da Constituição, que determina a prioridade absoluta de crianças e adolescentes, traz caminhos para impedir que negligência de grandes empresas de tecnologia na internet seja explorada por outros agentes econômicos para violar direitos.
Assim, não é demais dizer que o dever de cuidado reafirmado pela Resolução é uma das peças-chave para a efetiva garantia dos direitos dessa parcela da população no ambiente digital.
Evidentemente, a implementação da Resolução dependerá de esforços conjuntos por parte de todos os órgãos competentes e da sociedade civil, para que ocorra uma profunda readequação desses modelos de negócios que, sistematicamente, vem violando direitos de crianças e adolescentes, como evidenciado pelos documentos da Meta vazados que mostram que a empresa sabia que o Instagram contribui para transtornos alimentares e pensamentos suicidas entre os seus jovens usuários.
A base normativa e a cobrança da elaboração de políticas públicas reafirmadas pela Resolução têm valor incomensurável para a construção de uma internet mais segura e respeitosa às crianças e aos adolescentes. Lembrando, não se trata de proteger os mais novos da internet, mas sim na internet.